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Feminismo, bases históricas e os desafios da conjuntura

Confira abaixo o texto extraído da atividade preparatória rumo ao 3º Encontro Nacional da MMM “Nalu Faria”, realizada em 11 de maio de 2024

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Por Miriam Nobre*

Quem usa óculos vai entender bem a metáfora que vou utilizar para falar sobre a tarefa que está colocada para nós enquanto feministas. Às vezes, a gente olha, acha que o mundo está embaçado, acha que não está enxergando direito, mas o que a gente precisa é simplesmente dar uma limpada no óculos, uma lavada com sabão. Então, uma primeira tarefa nossa é dar uma boa limpada nos nossos óculos, ajustar as nossas lentes.

Se compreendemos que este momento de preparação de um encontro nacional da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) é um processo de formação, pensamos nas nossas ideias fortes. Imaginem o que aconteceria se a gente estivesse andando pela rua, pensando até mesmo em outras coisas, andando pela nossa cidade, bairro e território e chegasse um repórter com um microfone na nossa frente perguntando: o que é o feminismo da Marcha Mundial das Mulheres?

Só conseguimos responder essa pergunta de forma desenvolvida e trabalhada nas nossas vidas porque fazemos o exercício de repeti-la. Há coisas que talvez sejam óbvias, que muitas de nós saibamos, mas, mesmo assim, precisamos repetir, porque é repetindo que a gente vai se atualizando e repensando.

Muitas de nós que construímos o feminismo queremos destruir o patriarcado, o capitalismo, o racismo, o colonialismo — tudo de um jeito só, porque a gente sabe que esses sistemas são inter-relacionados e a única forma de destruir um é destruindo todos ao mesmo tempo.

Muitas vezes, a grande discussão que surge é: qual é esse ponto de junção? Onde está esse nó? Onde está o nervo do dente? Onde é que a gente vai tocar nesses sistemas para destruí-los? Para essa pergunta existem muitas visões. Do meu ponto de vista, todas são importantes, todas vão nesse sentido de destruição, mas é muito importante a gente afirmar a nossa visão enquanto MMM, que eu vou nomear de feminismo socialista.

Para o feminismo socialista, o que é central? O que está nessa inter-relação? O que está em jogo? Uma forma específica de organizar o trabalho na nossa sociedade, que é a divisão sexual do trabalho. Ela é parte de uma divisão social do trabalho, que começa com a separação entre os proprietários dos meios de produção, o capital e aquelas pessoas que só têm a sua força de trabalho para colocar nesse jogo, ou seja, que são trabalhadoras.

Existe um conflito entre o capital e o trabalho, que não é só sobre a apropriação da riqueza criada por esse trabalho, mas sobre as próprias condições nas quais esse trabalho é feito. Por exemplo, nossa companheira Marlene, aposentada dos metroviários, conta como ela vê que o metrô pode ser organizado na cidade de São Paulo. A Marlene não está preocupada só com a remuneração de sua categoria pelo seu trabalho. Ela está preocupada com como esse trabalho gera condições das pessoas se deslocarem numa cidade como São Paulo, como esse trabalho pode ser melhor feito, qual é o valor de uso desse trabalho, que é diferente do interesse do capital, que só pensa o trabalho como um meio para acumular riqueza.

Essa divisão social do trabalho se relaciona com outras formas de organizar o trabalho: uma divisão internacional do trabalho, mas também uma divisão sexual do trabalho, que tem como pressuposto uma separação entre o que é o trabalho considerado produtivo e o trabalho considerado reprodutivo, ou seja, aquele trabalho que produz as pessoas e as condições do trabalho da produção acontecerem.

Essa separação acompanha uma hierarquia que considera mais o trabalho da produção do que o trabalho da reprodução, e ainda uma associação que diz que o trabalho produtivo pertence ao mundo dos homens e o outro, ao mundo das mulheres.

Isso organiza a forma como o trabalho doméstico de cuidados é atribuído como responsabilidade principalmente das mulheres no espaço da família. Também organiza a própria forma do trabalho na economia como um todo. A divisão sexual do trabalho se reproduz em vários domínios da organização do trabalho na nossa sociedade.

Esse é um exemplo que Helena Hirata, companheira nossa, fala muito: como esse processo de nos qualificar como trabalhadoras é feito num mesmo movimento de nos preparar como mulheres para o nosso papel na família. A divisão sexual do trabalho organiza o trabalho no interior da família e no conjunto da sociedade. Ela necessita de uma família patriarcal para funcionar.

Algumas companheiras feministas materialistas falam que a heteronormatividade (essa ideia de que a relação heterossexual é a norma na nossa sociedade) está colada com a divisão sexual do trabalho. Essa ideia de que os homens trazem o salário para casa e as mulheres cuidam do trabalho doméstico só vai funcionar numa relação heterossexual.

Podemos pensar: “nossa, mas não é assim, em 25% dos domicílios aqui no Brasil as mulheres estão sozinhas, são mães solos cuidando dos seus filhos”. Sim, é verdade, às vezes essa lógica tem muito pouca relação com a realidade em si. Ainda assim, ela tem uma força ideológica de organizar a nossa sociedade, inclusive de organizar o próprio Estado com suas políticas familistas, como na forma que se estrutura a política de assistência social, que sempre tem uma ideia de família como padrão ou de uma família desfuncional perante a qual o Estado atuaria como ‘pai’, ou ainda como nas formas de isenção do imposto de renda em que as famílias têm maior isenção do que as pessoas individualmente.

Uma série de políticas nos empurra para esse tipo de organização via família. Também somos empurradas pela via do convencimento, da coerção. A violência é uma forma de impor às mulheres o seu papel tradicional, seja na divisão sexual do trabalho, seja na própria família.

Quando a gente passa a discutir isso com a perspectiva da economia feminista, aparece com bastante força a ideia de que o nosso desafio não é só colocar em evidência a questão da reprodução e todo esse trabalho invisível doméstico e de cuidados realizado majoritariamente pelas mulheres. Nossa tarefa é mostrar os nexos entre a reprodução e a produção. Mostrar como esse trabalho de reprodução, na verdade, sustenta toda a base econômica da sociedade. A própria sociedade capitalista se reproduz com esse processo de extração do trabalho, da energia, da nossa criatividade, da nossa vida, para concentrar nas mãos daqueles que são proprietários dos meios de produção e que têm o poder na nossa sociedade.

Essa é a ideia básica da nossa discussão com o feminismo socialista. Na construção da Marcha Mundial das Mulheres, a gente vai dialogando com outras formas e outras visões do feminismo.

Quando a gente faz a discussão sobre o feminismo negro, trazemos a ideia de Angela Davis, uma militante do movimento feminista negro estadunidense, que diz que a forma de organização da economia no período em que a escravidão era uma instituição (chamada de modo plantation, que é um modo de monocultivo) é característica desse modo a extração máxima da natureza, do trabalho e da energia das pessoas, numa produção em grande escala com uma apropriação controlada, inclusive, por capitais que estão fora daquele lugar: a colônia, a relação entre colônia e colonizado. Esse tipo de organização prescindiu da divisão sexual do trabalho porque as mulheres e os homens escravizados eram destituídos do seu próprio gênero para trabalhar intensamente na produção de algodão, nos Estados Unidos, ou na produção da cana, aqui no Brasil. Esse tipo de organização ainda faz sentido até hoje na organização econômica estadunidense. Para ela, a questão das mulheres aparece pela via da violência e da reprodução viológica e da força de trabalho, sobretudo com a violência sexual.

A reprodução biológica, inclusive pela forma da violência, faz parte de uma divisão sexual do trabalho. Inclusive, tem surgido no Brasil o debate sobre a entrega das nossas informações genéticas para esses sistemas que traçam as origens das pessoas. Nisso, aparece a composição da sociedade brasileira que tem uma grande parte de DNA de mulheres negras, indígenas e de homens brancos, comprovando a utilização das mulheres como reprodutoras da força de trabalho via violência colonial.

A questão da reprodução da força de trabalho passa não somente pelas mulheres parindo e tendo filhos, mas por cuidar e preparar essas crianças com habilidades para atuar no mundo do trabalho, que vem com o sentido de disciplinamento e domesticação. Nesse modelo, há a divisão racial do trabalho. Por isso, vemos que são as mulheres negras e pobres que estão nos serviços, nos trabalhos dentro da casa grande, em uma linha de continuidade com o emprego doméstico até hoje. Os homens negros e pobres ficam nessa situação de serviços que não têm sentido na produção de um valor de uso necessário na nossa sociedade, como é o caso dos seguranças privados.

Há também um debate sobre o neoliberalismo e o trabalho. Muitas vezes, mulheres são organizadas nos serviços para uma estrutura de concentração de renda tão grande que as pessoas muito ricas têm uma quantidade enorme de pessoas a seu serviço. As mulheres negras trabalhadoras domésticas estão em condições mais vulneráveis, com menor renda, sem carteira assinada.

A divisão racial do trabalho na estruturação da nossa sociedade é uma utilização do racismo como mecanismo de disciplinamento da força de trabalho. Isso dialoga com uma ideia bem interessante da Patricia Hill Collins sobre as imagens de controle. São imagens que ditam padrões do que é ser mulher negra, do que é ser mulher branca, do que é ser homem negro, do que é ser homem branco. Mesmo que tenha pouca relação com a realidade, isso se impõe sobre nós como uma forma certa de viver.

Quando a gente foge dessa norma, a gente está exposta a situações de violência que nos coagem. As imposições de padrões de beleza são um exemplo disso. O que é o padrão de beleza? É o de uma mulher que não trabalha. O padrão de beleza é de uma mulher branca, que não tomou sol ou, se está bronzeada, é de um determinado jeito. O tipo do corpo, a magreza, todas essas ideias conferem um padrão de beleza de uma mulher confinada no espaço doméstico e que aparece como um exemplo da riqueza do ‘senhor’ que a possui.

Isso também conversa com o feminismo negro, com que o que podemos nomear de ecofeminismo e com o feminismo camponês. Tendo relação com a natureza, esse feminismo faz uma crítica à visão androcêntrica do mundo, que pensa que a natureza existe em função da humanidade.

Precisamos conseguir pensar não só na forma como o capitalismo colonial, patriarcal e racista subordina a natureza nesse grau de extração máximo possível da sua energia e vitalidade, no sentido da acumulação e da extração da mais-valia, mas também para pensar como construímos alternativas que fogem a isso. Como pensar uma organização social que tem o bem-estar e o valor de uso no seu coração, no seu motor, e não o processo de acumulação?

Essas questões também puxam um debate não só sobre qual é a nossa agenda, mas quem é o sujeito político protagonista dessa agenda, quem consegue empurrar essas questões para frente. O feminismo negro traz com força a ideia de que as mulheres negras no seu próprio corpo vivenciam essa tripla opressão. Tripla não no sentido de somar — “sou triplamente oprimida porque eu sou mulher, porque eu sou negra, porque eu sou trabalhadora” — e sim no sentido de “eu sou oprimida de uma forma diferente porque eu sou negra, sou mulher e sou trabalhadora, e entendo o que são a linguagem, o código e as movimentações do opressor”.

Para entender esse código, passamos por um processo de construção de consciência que tem a ver com a nossa organização como movimento. Fiquei muito emocionada ao ouvir uma companheira, Indira, contando que uma mulher negra contou a ela como era duro ver que a mãe, que trabalhava como empregada doméstica na casa de uma mulher branca, trazia para a dinâmica familiar delas os códigos de higiene da outra casa, como se aquele fosse um padrão de organização social.

Para perceber e enfrentar as opressões da branquitude, é preciso um processo de organização e de construção de consciência que herda conhecimentos de processos comunitários nos nossos bairros e também das comunidades que a gente cria como movimento social — por exemplo, que a gente cria como Marcha Mundial das Mulheres.

Uma questão é fundamental para nós e está no centro do debate: o trabalho organiza as condições objetivas da vida, mas também é determinado e determina o que é a nossa própria subjetividade.

Algumas companheiras/os/es pensam que o que estrutura o patriarcado é viver a expectativa do gênero na sociedade, a chamada performance de gênero — não é como a gente é, mas como a gente performa gênero. Assim, aquelas pessoas que são dissidentes a essa norma seriam as protagonistas principais na desmontagem do patriarcado. Essas pessoas trazem vivências muito fortes, que trazem um grau de violência que passa pelo assassinato, pelos transfeminicídios e por esse discurso e reação conservadora em relação ao que chamam de ideologia de gênero.

Outro dia ouvi de uma companheira, Pati, que ela viu um folheto de uma pessoa da direita conservadora falando mal da economia solidária, porque a economia solidária favorecia a ideologia de gênero. Confesso que achei muito sofisticado da parte deles, porque, de fato, organizar a economia de outra maneira, seguindo a nossa vontade para o nosso trabalho, é para estourar o que são as expectativas e o que são os papéis tradicionais de gênero. Diante dessas reações violentas, essas pessoas explicam dessa maneira. Por isso, acho que essas pessoas que partem da ideia da performance de gênero são nossas companheiras, nossas aliadas no processo de destruição do patriarcado.

Não concordo, porém, que sejam as pessoas dissidentes de gênero as únicas protagonistas na construção de um feminismo que tem esse poder de destruição. As mulheres trabalhadoras, em especial as mulheres trabalhadoras negras, mas também as mulheres trabalhadoras brancas e pobres, que vivem a contradição do capital nos seus corpos, também constroem esse feminismo antipatriarcal. A gente tem o nosso corpo formado para isso, a gente pode ver nas trabalhadoras de fábrica a postura corporal que elas têm por ficar horas ali, por exemplo. No meio sindical, a gente ainda escuta sobre o tempo controlado para ir ao banheiro e comer, dentro outras violências que ainda acontecem no mundo do trabalho. Existe um controle sobre o corpo e sua formação.

Nossa querida Nalu Faria deu uma entrevista no ano passado para uma jornalista e cientista política chamada Flávia Biroli sobre esse tema do conservadorismo. Ela nos contou que a Nalu falou que o feminismo estava em todo lugar, mas talvez não estava nos lugares onde era mais necessário. O feminismo conseguiu posicionar tantos temas, tantas questões, mas a gente ainda tem um desafio grande e uma lacuna grande em concretizar isso nas urgências das mulheres trabalhadoras. Como a gente consegue que essas mulheres trabalhadoras tragam as suas vivências mais urgentes do que está acontecendo agora para isso pautar a agenda do nosso movimento?

Estou falando de mulheres trabalhadoras que vivem essa situação de opressão no seu local de trabalho, mas também no lugar onde elas vivem e são afetadas por esse grau de destruição capitalista. A gente fica até sem saber como dizer algo em relação ao que está acontecendo no Rio Grande do Sul e também no Maranhão, que é expressão do que a gente já vinha falando há bastante tempo sobre o que pode acontecer com o fato da temperatura do planeta estar sendo aquecida pelo uso intensivo de combustíveis fósseis.

Há muito tempo, as companheiras que vivem no campo estão falando para a gente sobre como as coisas mudaram. Não é só a questão da chuva, é também a chuva extrema, a seca. É também aquela planta que não floresce mais naquela época. É aquele conhecimento que ela tinha para plantar e colher na hora que estava frutificando na floresta. Todos esses são conhecimentos que essas comunidades têm e que, por falta de poder político, não pautaram o funcionamento da nossa sociedade.

Isso coloca para nós uma tarefa bem grande: destruir o capitalismo, o patriarcado e o racismo e, ao mesmo tempo, ir assentando as bases de uma outra organização social, econômica, cultural, para a gente viver bem e melhor.

Veja também a gravação:

*Miriam Nobre é militante da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil. O texto é a transcrição da atividade preparatória rumo ao 3º Encontro Nacional da MMM “Nalu Faria”, realizada em 11 de maio de 2024.

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