“Romper as cercas da ignorância
Que produz a intolerância”
Estamos vivendo tempos obscuros na sociedade brasileira, um contexto de golpismo, violência, reformas neoliberais e ataques conservadores às e aos trabalhadores, às mulheres, à população negra, indígena, quilombola e LGBT. Essa ofensiva se expressa nos mais diversos aspectos, sendo traduzida, na vida das mulheres, no aumento das desigualdades das relações sociais de sexo, na agudização das condições de trabalho, na ampliação do controle sobre o corpo, vida e sexualidade, na violência, nas políticas públicas, no aumento da taxa de feminicídio, ou seja, são múltiplas as faces da sociedade capitalista-patriarcal-racista.
Escola Sem Partido, a caça a “Ideologia de gênero”, atos do MBL nas universidades, censura às artes, tentativa de proibição do aborto em qualquer circunstância, ataques de ódio durante a visita de Judith Butler ao Brasil, não são atos isolados e nem mera cortina de fumaça da “política geral”. A máquina de moer gente do capital é composta pelo racismo, pela heteronormatividade e pelo patriarcado. Juntos, buscam silenciar, invisibilizar e matar sujeitos coletivos construtores de uma nova ordem em que a liberdade sexual, a valorização do trabalho doméstico e de cuidados, o fim do trabalho alienado e a valorização da vida estejam no centro.
No último período também houve denúncia e resistência feminista popular ao rolo compressor do golpe patriarcal, que teve como um de seus atos a derrubada da primeira mulher Presidenta eleita e, mais a frente, a tentativa de acabar com a previdência social que, baseada na solidariedade e universalidade, ainda que com falhas, dá conta de assegurar mulheres, donas de casa, trabalhadoras rurais, na medida de suas diferenças, dos menores salários, das maiores e triplas jornadas de trabalho, do trabalho informal, precarizado e não pago. Com a luta em defesa da previdência social pudemos massificar o debate sobre divisão sexual do trabalho no seio da sociedade e até hoje a reforma da previdência do governo golpista não se concretizou, mas sabemos que temos ainda um longo caminho pela frente. Um ataque a uma pesquisadora que estuda a divisão sexual do trabalho nos alerta ao patamar da ignorância que temos que enfrentar e superar, rumo ao descortinamento das bases materiais da opressão da metade da humanidade.
O NEIM – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher –, departamento reconhecido nacionalmente por ser referência na produção acadêmica nos estudos de gênero, mulheres e feminismo, que abriga hoje o curso de graduação em Gênero e Diversidade e o Programa de Pós-graduação com mestrado e doutorado, é uma conquista, um espaço de resistência, que vem no momento sofrendo ataques de todos os tipos. Seja das fundações de fomento à pesquisa, seja dos cortes do governo golpista, e, mais recentemente, sofrendo ataques de grupos de direita, com inclinações fascistas, que veem, nesse local-refúgio, de mulheres feministas, negras, indígenas, transexuais, uma ameaça ao seu projeto.
Ameaças de morte e outros tipos de violência contra uma das docentes, pesquisadora do NEIM; tentativa de impedimento de defesa de uma dissertação de Mestrado de aluno do lHAC (Instituto de Humanidades, Artes e Ciências) e a perseguição e ridicularização nas redes sociais de projetos de pesquisa e extensão que versam sobre essas temáticas são alguns dos episódios desses últimos meses. A censura ao pensamento crítico, à educação e à ciência libertadoras, é mais um sintoma de uma sociedade adoecida, que passa por uma crise profunda, que ataca desde a professora do ensino fundamental que procura ensinar a igualdade de gênero para adolescentes, até a ciência feminista que vêm há anos desconstruindo as relações desiguais entre homens e mulheres, construindo o arcabouço teórico extremamente necessário para a luta das mulheres. De um lado os que querem o pensamento uniforme, a descrição acrítica do mundo, a ignorância e a intolerância. Do nosso lado, a diversidade de pensamento, o respeito às diferenças, a denúncia das desigualdades, a compreensão do mundo para além do que nos é dado ver e a tolerância.
A solidariedade entre as mulheres é fundamental para a transformação social, mudar as bases dessa sociedade capitalista-patriarcal-racista é um trabalho para milhares, nossa sede de mudar a vida das mulheres para mudar o mundo e mudar o mundo para mudar a vida das mulheres é o que nos mantém em luta, sem deixar nenhuma para trás. Seguimos, construindo com as mulheres trabalhadoras, novos valores, novos sonhos, novas conquistas.
Por isso, por meio dessa nota, nós da Marcha Mundial das Mulheres demonstramos todo o nosso repúdio aos que cerceiam a nossa liberdade e ao sistema que retira do nosso suor a sua condição de perpetuação. Mas, é nas ruas, nas nossas ações, que a solidariedade feminista é, de fato, posta em prática. Nenhum passo atrás e nenhuma mulher a menos no front. Façamos um novembro de resistência e luta, orientadas pela consciência negra e pelo combate à violência contra as mulheres. Não negaremos a palavra em troca de falsa segurança. Continuaremos denunciando os desmandos e injustiças até que todo o conservadorismo exploda convertido em lixo. Seguiremos em marcha até que todas sejamos livres!
Amo as mulheres desde a sua pele que é a minha
a que se rebela e luta com a palavra
e a voz desembainhadas,
a que se levanta de noite para ver se o filho chora,
a que luta inflamada nas montanhas,
a que trabalha mal-paga na cidade,
Vamos e que ninguém fique no caminho…
para que este amor tenha a força dos terremotos…
dos ciclones, dos furacões
e tudo que nos aprisionava
exploda convertido em lixo.
(Gioconda Belli)