Nota pública critica matéria sobre aborto na BBC Brasil
A BBC Brasil publicou, no dia 6 de junho, matéria sobre a prática clandestina do aborto tratando de um grupo de WhatsApp organizado por mulheres, onde aquelas que têm uma gravidez indesejada buscam apoio emocional, a compra de comprimidos e orientações para fazer o aborto farmacológico. A repórter fingiu estar grávida, enganando o grupo e suas administradoras para obter informações. Ao entrar naquele espaço através da mentira, acessou um nível de exposição a que jamais teria acesso de outra forma. Consideramos de extrema gravidade o ato de expor a dor e o medo de mulheres em situação de vulnerabilidade, mesmo sob a expressão de anonimato.
Consideramos falaciosa a forma de divulgar a matéria, com uma imagem de mulher em estágio avançado de gestação, quando o aborto só pode ser assim considerado até as 20 semanas de gravidez. E mais, quando a prática do aborto farmacológico, objeto da matéria, é recomendada para gestações de até 12 semanas (quando não há barriga aparente) nos vários protocolos de saúde reprodutiva nacionais e internacionais, alias desconsiderados na reportagem. A matéria é preconceituosa ao tratar novas tecnologias de interrupção de gravidez e práticas em redes de solidariedade entre mulheres como ‘clínica secreta’.
O jornalismo investigativo é importante, mas deve ser feito com base na ética jornalística de preservação das fontes e contemplando o direito do contraditório. Destacamos ainda que a referida matéria (e o vídeo que a acompanha) parece estar em desacordo com a linha da BBC Londres, pois as versões português-inglês têm diferenças substantivas, sendo a versão inglesa mais sóbria, menos sensacionalista. Queremos dialogar, portanto, com a linha editorial da BBC Brasil nesta matéria.
Perseguir o aborto é perseguir as mulheres!
Há muito o movimento feminista vem denunciando a ofensiva de setores conservadores contra os direitos das mulheres e pela criminalização da prática do aborto, que tem resultado em verdadeira caça às clínicas, criminalização das mulheres e promoção de leis para retroceder direitos já estabelecidos, como o atendimento ao aborto legal, cujos serviços, além de sucateados, estão ameaçados de entrar na ilegalidade caso se aprovem propostas de emenda constitucional em pauta no Congresso.
No contexto de criminalização das mulheres, muito grave também é a prática crescente de denúncia, por parte de diversos/as profissionais de saúde que, ferindo a ética de suas profissões (médica, da psicologia e da enfermagem), tratam o aborto como caso de polícia e denunciam mulheres em situação de abortamento que chegam aos hospitais, o que tem redundado em prisão e processos contra essas mulheres.
Setores do jornalismo têm se servido ao papel de revelar locais e endereços de clínicas clandestinas de aborto para impedi-las de funcionar, promovendo também a prisão das mulheres. Sobre isto podemos citar o caso de Mato Grosso do Sul, desencadeado em abril de 2007 quando, numa ação associada entre mídia e polícia, houve invasão e fechamento de uma clínica e a exposição de centenas de mulheres, num processo que gerou indiciamentos e condenações abusivas.
Historicamente o aborto clandestino tem feito vítimas no Brasil. A criminalização torna a prática do aborto um fator de aumento da mortalidade materna. O abortamento ilegal e inseguro provoca mais mortes entre mulheres pobres e negras do que entre mulheres brancas.
A matéria é falha e tendenciosa no que teria de mérito: abordar o aborto farmacológico, um debate necessário
A matéria apresenta apenas avaliações negativas do uso do Misoprostol por parte das pessoas entrevistadas. Desconsidera a vasta literatura favorável à prática do aborto farmacológico e à política de legalização do aborto, que ressalta suas vantagens para as saúde das mulheres, redução do número de gravidezes indesejadas, e portanto de abortos, e das mortes maternas.
O uso do Misoprostol, conhecido pelo nome de uma de suas marcas, Cytotec, foi um elemento fundamental para a diminuição da mortalidade por aborto no Brasil. Sobre isto há vasto material de pesquisa em sítios eletrônicos acadêmicos e de organizações não governamentais, todos com respaldo científico e facilmente acessados na internet ao mais breve esforço de pesquisa.
A reportagem se equivoca ao afirmar que a proibição da venda do Misoprostol nas farmácias populares data de 2005. Esta proibição vem de muito antes e é preciso conhecer a história. O Cytotec entrou no mercado brasileiro em 1985, e as mulheres logo descobriram seu efeito abortivo (o medicamento se destina ao tratamento de úlcera gástrica). Isto bastou para que, no boca a boca, se disseminasse a descoberta, e houve aumento de vendas, seguido de pressões para a retirada do produto do mercado. Isto durou até 1998, quando o Ministério da Saúde se rendeu às pressões conservadoras editando a Portaria 344 , que restringiu a venda e uso do Misoprostol a hospitais cadastrados, e empurrou as mulheres para o mercado paralelo. Criada em 1999, a ANVISA seguiu com a política restritiva. Em 2006 este órgão de vigilância suspendeu, através da Resolução 1050, a publicidade e a divulgação de orientações sobre o uso do Misoprostol para fins abortivos em fóruns de discussão, murais de recados e sítios na Internet . Mesmo após recomendação do uso obstétrico do Misoprostol pela da OMS, em 2007, e com a subsequente autorização da Anvisa (2008) para adicionar o Misoprostol à lista de medicamentos essenciais, sua venda e uso prosseguiram restritas a hospitais cadastrados, mantendo-se a portaria de 1998.
O que resta para as mulheres em sua demanda pelo medicamento é, muitas vezes, busca-lo no mercado paralelo, sob o risco de serem enganadas com comprimidos falsos ou com validade vencida. Isto acontece numa realidade em que o acesso moderno ao aborto farmacológico está consolidado como prática segura e redutora de riscos.
Legalizar o aborto, direito ao nosso corpo!
O aborto é parte da vida das mulheres e dos percursos da humanidade. A proibição nunca impediu que mulheres recorressem ao procedimento ao julgar necessário. Está comprovadamente fracassada a política repressiva, pois não reduz o número de abortamentos. A ilegalidade não resolve o problema, viola direitos humanos e empurra as mulheres a soluções precárias, colocando suas vidas em risco.
Na América Latina a maioria dos países tem leis muito restritivas. Em alguns o procedimento é proibido em qualquer circunstância. Com poucas exceções o Estado tem se tornado cada vez mais omisso diante da grave situação que a ilegalidade acarreta, passando a ser um agente da violação dos direitos reprodutivos, ameaçando a autonomia e soberania das mulheres sobre seus corpos e suas vidas. Frente a tudo isto, várias experiências feministas de resistência e apoio à autonomia das mulheres têm se propagado como no Uruguai, Argentina, Chile, Colômbia, Brasil e outros mais.
São experiências fundamentais para que as mulheres que decidem pelo aborto saiam do isolamento e de práticas insalubres, e adquiram condições de tomar decisões mais seguras e melhor orientadas. No atual contexto o principal método nesta direção é o aborto farmacológico, pelas razões já mencionadas de redução de risco à vida e à saúde das mulheres. É o método usado nos diversos países, inclusive no Uruguai, onde o aborto tornou-se legal e onde as mulheres recebem os comprimidos e as orientações diretamente do serviço público de saúde.
Nós, do movimento feminista, lutamos incansavelmente pela legalização do aborto e para que o procedimento seja implementado no SUS de forma segura e gratuita para todas as mulheres que dele necessitem. O Brasil está entre os países em que se torna cada vez mais grave a situação de criminalização e clandestinidade, e nesse contexto as experiências de apoio e orientação às mulheres são bem vindas! O apoio ou acompanhamento solidário entre mulheres, inclusive via WhatsApp, é muitas vezes o único refúgio.
Por um jornalismo isento e informado
Repudiamos a linha editorial desta matéria por seu apelo sensacionalista, imprecisões e parcialidade. A reportagem adotou procedimentos questionáveis para obter informação e expos o grupo sobre o qual reporta ao risco da criminalização. Recorreu à fala médica com o intuito de reiterar uma situação de risco pela voz da autoridade, sem levar em conta os paradoxos que envolvem esta dramática realidade e demolindo os aspectos positivos da ação desenvolvida pelo grupo, que cobre uma demanda social real, carente de políticas públicas que por ela respondam.
O conhecimento sobre o corpo, a gestação, o parto e sobre as práticas abortivas são parte da cultura e de sabedorias seculares que as mulheres detêm desde muito antes da constituição da medicina. A partir da medieval caça às bruxas esta sabedoria vem sendo desmoralizada e subtraída, num intuito de controle sobre o corpo das mulheres, disciplinado e subordinado às leis e ao sistema de poder, no nosso caso o sistema capitalista, racista e patriarcal aqui instalado com a colonização.A linha editorial adotada nesta matéria coloca a BBC Brasil ao lado dos setores mais retrógrados e antidireitos humanos hoje atuantes na sociedade brasileira.
9 de junho de 2018
Frente Nacional Contra a Criminalização e Pela Legalização do Aborto
Faça o download a nota em PDF aqui:
NOTA Frente Nacional sobre materia BBC Brasil