Documento da MMM Américas rumo ao Fórum Nyeleni 2025: “Na rota da soberania alimentar”

22/05/2025 por

Em 2025 acontece em setembro, no Sri Lanka, o 3º Fórum Global Nyèleni por Soberania Alimentar. Sua primeira edição aoncteceu em 2007 em Selingué, Mali, e foi batizado com o nome de Nyèleni, uma camponesa mítica que domesticou o fonio, cereal importante na dieta alimentar da região. O Nyèleni é um momento-chave para a unidade e a ação popular a luta pela soberania alimentar em todo o mundo e a Marcha Mundial das Mulheres esteve envolvida desde o início de sua construção junto à movimentos aliados como Via Campesina e Amigos da Terra Internacional.

Abaixo, leia o documento produzido por companheiras da Marcha Mundial das Mulheres das Américas com a visão política do movimento sobre a construção deste processo:

Leia também em inglês, espanhol e francês

Por: Mafalda Galdames (MMM Chile) , Sarah Luiza de Souza Moreira (MMM Brasil) e Kelly Gutierrez

Marcha Mundial das Mulheres das Américas

“Nós, os mais de 500 representantes de mais de 80 países, de todo o mundo, de organizações de camponesas e camponeses, agricultoras e agricultores familiares, pescadores e pescadoras, povos tradicionais, povos indígenas, povos sem terra, trabalhadoras e trabalhadores rurais, migrantes, pastores, comunidades florestais, mulheres, crianças, jovens, consumidores, movimentos ambientais e urbanos, nós nos reunimos no povo de Nyéléni em Selingue, Mali, para fortalecer o movimento global para a soberania alimentar.”

O processo:
Fórum Mundial de Soberania Alimentar
Nyéléni, Selingue, Mali, 23-27 de fevereiro de 2007

Esse Fórum Mundial de Soberania Alimentar ocorreu no continente africano, no país de Mali, na região de Sikasso, localizada a 140 quilômetros da capital Bamako. Um local particularmente bonito devido às suas características: um espaço aberto próximo a uma grande represa de água, que leva o mesmo nome da Comunidade Selingue. A própria comunidade construiu ali as instalações do acampamento, especificamente para reunir as delegadas e os delegados. Foram instaladas cabanas para acomodação e espaços para discussão e debate, em um plano austero e rústico, dadas as condições econômicas de seu território. No entanto, o carinho, o afeto e a alegria da população local e dos vizinhos foram o valor agregado aos dias de convivência que tivemos nesse evento inesquecível. Ele marcou o início de um processo cheio de simbolismo e gestos de humildade e solidariedade das organizações anfitriãs da Via Campesina, da Marcha Mundial das Mulheres e de outras organizações internacionais que acreditaram nesse projeto de vida, que é a luta pela soberania alimentar dos povos.

Essa reunião assumiu por unanimidade das e dos participantes o nome Nyéléni, em homenagem à camponesa assim chamada por seus pais, que, segundo a lenda, contrariando as rígidas regras e costumes de sua comunidade, assumiu a produção de alimentos para sua família em tempos de escassez. A primeira declaração que teve a virtude de convocar movimentos globais que assumem a defesa da produção saudável e diversificada de alimentos, diz:

A maioria de nós é produtora de alimentos e estamos dispostos, somos capazes e queremos alimentar todas as pessoas do mundo. Nosso patrimônio como produtores de alimentos é fundamental para o futuro da humanidade. Esse é particularmente o caso das mulheres e dos povos indígenas, que são criadores de conhecimentos ancestrais sobre alimentos e agricultura e que são subvalorizados. Mas esse patrimônio e essa capacidade de produzir alimentos nutritivos, de qualidade e em abundância estão ameaçados e prejudicados pelo neoliberalismo e pelo capitalismo global.

A partir de “Nyéléni”, o compromisso assumido pelos delegados que compareceram de diferentes organizações e regiões do planeta, divulgamos o princípio da soberania alimentar. Incorporamos esse princípio em nossas propostas de defesa da agricultura camponesa, defesa da pesca artesanal, defesa do cuidado da natureza e dos bens comuns, assumindo que o princípio da soberania alimentar engloba todas essas demandas legítimas, pelo direito humano à alimentação e a uma vida digna.

Há dezessete anos, esse foi um Fórum importante que afirmou a Soberania Alimentar como um princípio de processos anteriores perante a Organização Mundial do Comércio (OMC). Mais tarde, em um Fórum de Soberania Alimentar realizado em Cuba, onde foi proposto que a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) incluísse a Soberania Alimentar em seus programas. Nós já vínhamos trabalhando em nossas propostas, mas a partir daí esse conceito nomeamos uma luta que várias organizações, movimentos sociais, feministas e organizações urbanas feministas de mulheres já estavam engajadas, afirmando a defesa da alimentação saudável e os direitos à autonomia em sua
produção, comercialização e consumo. Houve também um processo de conexão dessa reflexão com a defesa dos direitos humanos em geral e, especificamente, dos direitos sexuais e reprodutivos, incluindo o direito de decidir pela autodeterminação do próprio corpo em termos de reprodução da espécie.

Nesse processo de fortalecimento das lutas, seguimos coletivamente um lento trabalho de conscientização e avanço contínuo na integração da soberania alimentar nos movimentos populares e intelectuais, que integram esse direito em suas plataformas de reivindicações sociais e econômicas, como o direito à terra, à água e à defesa da natureza como um todo para apoiar a autonomia e a soberania dos povos. Esses, por sua vez, fazem o processo de integração, entre os movimentos mistos, do direito de decidir que as mulheres detêm em prol de uma vida plena. Vale dizer que tem sido uma luta importante afirmar a relaçãointrínseca entre soberania alimentar e feminismo, questionando não apenas que historicamente foram e são as mulheres as responsáveis por garantir a alimentação de toda a família, da comunidade e da sociedade, mas também que é necessário reconhecer seus conhecimentos e práticas tradicionais como trabalho que garante a sustentabilidade da vida.

As feministas ainda afirmam a necessidade de questionar e confrontar a divisão sexual e racial do trabalho que sobrecarregou e sobrecarrega o corpo e a saúde das mulheres. Hoje, 17 anos depois desse Fórum histórico, a Declaração continua válida. Olhando para todos esses anos, podemos dizer que avançamos na socialização de nossas proposta. Apesar de termos um sistema de comunicação adverso, aliado ao grande capital, que não divulga nossas mensagens e que se omite em denunciar as violações dos direitos humanos e a violência patriarcal, racista e colonialista que continuamos a vivenciar, nosso compromisso com a defesa da soberania alimentar se estende por todos os continentes e se sustenta em conteúdos práticos como a transmissão de conhecimentos e saberes ancestrais para o cultivo de hortas, a defesa de sementes nativas e/ou crioulas, o intercâmbio de produtos de camponeses e produtores, o comércio local, a conservação de alimentos sazonais, a produção têxtil artesanais, entre outros. Tudo em um circuito que exige o cuidado com a natureza, sua biodiversidade, incluindo suas montanhas, rios, lagos e mares, bem como o cuidado com a vida, a saúde e o corpo-território das mulheres.

O que queremos dizer com soberania?

Soberania é a vontade política de um povo com o direito de tomar suas próprias decisões, com autonomia para se manifestar, independentemente de poderes externos.

Soberania alimentar é a liberdade e a capacidade das pessoas e de suas comunidades de exercer o direito de se alimentar e produzir seus próprios alimentos e de lutar contra o poder das corporações transnacionais e de outras forças que destroem os sistemas de produção popular. É o direito de todas as pessoas de ter acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e com respeito à sua cultura.

O direito individual à alimentação é articulado com uma dimensão social de como esse alimento é produzido, considerando práticas que respeitam o meio ambiente, relações igualitárias entre as pessoas, acesso aos recursos naturais envolvidos na produção, como água, terra, sementes e mercados locais.

Defende os princípios de justiça, solidariedade e cooperação como forma de fortalecer a agricultura camponesa, em cada unidade familiar e comunitária e na articulação entre elas. Trata-se de uma proposta ampla que incorpora a defesa de uma reforma agrária justa, o controle dos territórios pelas pessoas que neles vivem, os mercados locais, a biodiversidade, a autonomia, a saúde e a qualidade de vida.Os povos agrícolas reconhecem a contribuição econômica, social e cultural da produção dos camponeses e das mulheres nos circuitos de distribuição local e são capazes de definir políticas, recursos econômicos, estruturas e centros de pesquisa e extensão nesse sentido.

Qual é a contribuição das mulheres na construção da soberania alimentar?

As mulheres da Via Campesina se afirmam “como protagonistas na construção de outro mundo possível, e se propõem a defender, fortalecer e ampliar as organizações de luta pela soberania alimentar; pelo direito à terra, à água e ao território; pela reforma agrária integral; pela defesa das sementes como patrimônio dos povos; pela soberania econômica das mulheres e pela soberania dos corpos e dos territórios”. Amplos setores do movimento de mulheres e feminista, como nós da Marcha, concordam com o que as mulheres da Via Campesina estão propondo e nos unimos a essa luta.

A horta, como uma experiência em agroecologia e soberania alimentar

É um espaço sustentável para o cultivo das hortaliças mais comuns para autoconsumo. As hortaliças dividem o mesmo espaço com espécies arbóreas, flores e ervas que servem a diferentes propósitos, sejam eles estéticos, culinários, rituais e/ou medicinais. A horta constitui um ecossistema de flora e fauna habitado especialmente por grupos de pássaros silvestres, pequenos animais e insetos que mantêm uma relação estreita com as plantas, geralmente proporcionando-lhes benefícios.

As mulheres e as hortas

São as mulheres que assumem a maior responsabilidade por esse espaço produtivo. É a mulher o sujeito central de seu cuidado, organização, gestão e conhecimento, bem como a tomada de decisões e o manuseio direto de sementes, cultivos e colheitas, cujos produtos são destinados principalmente ao uso culinário. As mulheres possuem um valioso conhecimento ancestral que é transmitido de geração em
geração. Esse conhecimento abrange aspectos detalhados de folhas, frutos, tubérculos, sementes e plantas comestíveis. Elas também têm uma compreensão profunda dos vários usos dessas plantas, bem como dos locais e das estações em que podem ser encontradas.

Marcha Mundial das Mulheres e Soberania Alimentar

Desde a Marcha Mundial das Mulheres, percorremos um caminho que começou com a aceitação e a definição de nós mesmas como feministas. Temos uma longa história através dos movimentos feministas e reconhecemos a contribuição que nossas antepassadas deram na luta pelos direitos das mulheres, a partir da longa história dos movimentos de mulheres e/ou feministas que territorializamos em nosso continente, que são as Américas, que é a nossa Abya Ayala.Há muitas lutas de mulheres em Abya Yala e em outras regiões do mundo que têm caráter feminista, embora não possam ser necessariamente definidas como feministas devido às realidades territoriais em que estão inseridas, por exemplo, nos quilombos liderados por mulheres como Teresa de Benguela. A partir daí, desenvolvemos e processamos nossos feminismos, de modo que, nesse processo, incorporamos ao nosso movimento um feminismo popular, um feminismo de classe, um feminismo que se identifica com os respectivos territórios onde vivemos, um feminismo que se relaciona com as outras organizações de classe das quais participamos nos movimentos sociais. Esse é um feminismo que, obviamente, se declara autônomo em relação às instituições públicas, às instituições religiosas e, obviamente, luta pela autonomia de todos os pontos de vista.

Assim, há muitos anos, desde a proposta da Via Campesina às organizações para assumirem o princípio da soberania alimentar, temos clareza de que sem terra e sem água não há produção de sementes e, portanto, não há produção livre de alimentos. Integram essa proposta a Marcha Mundial das Mulheres, em aliança com outras organizações que participaram da Coordenação Latino-Americana de Organizações do Campo (CLOC – Via Campesina) e outras redes que têm a ver com a defesa dos direitos humanos, com a defesa da terra nos territórios, com a defesa da água. Do nosso ponto de vista feminista, contribuímos com o conteúdo coletivo propondo, por exemplo, a socialização do trabalho
doméstico, convidando as mulheres das cozinhas comunitárias a participarem dessa reflexão.

De organizações camponesas, também de organizações que defendem o consumo de alimentos saudáveis, o consumo de alimentos livres de agrotóxicos e pesticidas, que defendem a sazonalidade da produção de frutas e alimentos, a partir de Nyéléni, desenvolvemos uma rede para construir um trabalho coletivo que dê conteúdo às diferentes visões, que têm a ver com a soberania alimentar e com a defesa das sementes. Temos fortalecido nosso feminismo popular a partir de organizações de mulheres que vivem nas cidades e também participam da esfera urbana. Nossas organizações se caracterizam por ter muitos membros rurais, camponeses e jovens urbanos e também mulheres profissionais, portanto, nosso dever político é fortalecer os vínculos com as organizações ambientais, com a socialização do trabalho doméstico e de cuidados, convidando-as a participar das cozinhas comuns e/ou comunitárias.

Essa também é uma das tarefas das outras organizações que apoiamos e das quais participamos, como as organizações de mulheres camponesas que integram a CLOC. A agroecologia, a defesa das sementes e a soberania alimentar também fazem parte das propostas do feminismo camponês que veio para ficar nas organizações camponesas.É importante definir o que esse feminismo camponês popular identifica.

Em primeiro lugar, a identidade com os territórios e com a terra, a identidade com as formas de produção agrícola, com a produção saudável, limpa, com o comércio local, com a troca de conhecimentos baseada na transmissão de geração em geração da produção agrícola, que está ligada à agroecologia, à permacultura, etc.

Agora chamam de agroecologia, mas sempre foi uma agricultura camponesa que respeitou os ciclos da natureza, que também respeitou o cansaço da terra quando ela é semeada indiscriminadamente e quando é fumigada com muito uso de agrotóxicos. Temos nessa história, então, um processo e avanço contínuo de novos conhecimentos que caminham lado a lado com a agroecologia, com a soberania alimentar, com o feminismo popular camponês e também com a questão do cuidado. É um tema relevante nesses princípios que estão se entrelaçando cada vez mais.

Portanto, vamos juntas nesse feminismo que defende a soberania alimentar, a agroecologia e a economia feminista. A economia feminista é outra das teorias que foram implementadas a partir do feminismo de classe e do feminismo popular e, portanto, estamos estabelecendo essas relações e essas interseções entre o feminismo de classe, o feminismo popular e o feminismo comunitário. Não falamos de um feminismo, falamos de feminismos, porque estamos claramente cientes de que há correntes ideológicas que têm a ver com territórios, com identidades, com povos nativos, com mulheres, que têm a ver com seus diferentes grupos culturais e onde nossas companheiras estão localizadas desde o início.

Também estamos unidas nesse feminismo que defende a soberania alimentar, que defende a agroecologia, que defende a luta pelos territórios, que é contra o extrativismo, que é contra os sistemas capitalistas patriarcais que só pensam no lucro e no desejo de extrair e extrair cada vez mais riquezas da natureza sem pensar na sustentabilidade e nas gerações futuras. Temos muita discordância em relação ao sistema capitalista que está avançando atualmente no mundo, lutando cada vez mais para existir e destruir, cada vez mais pela ganância e pela riqueza; temos muitos desafios pela frente. Vemos como o capital está se pintando de verde e vermelho, em uma tentativa de disfarçar seu processo destrutivo, extrativista e violento.

As tecnologias têm sido usadas para fazer a “agricultura 4.0”, com o processo de digitalização da agricultura como mais um instrumento de controle de nossos territórios. Há desafios claros que temos de enfrentar juntas diante de um desafio comum e esses desafios também implicam solidariedade, respeito, compreensão mútua, enfrentamento de crises com a mente aberta, sendo críticas e autocríticas dos processos que nós mesmas construímos e que estamos avançando com fatores positivos. Precisamos eliminar as práticas que ajudam e incentivam esse capitalismo exacerbado e estamos lutando para unir práticas solidárias, que nos ajudem nessa história cada vez mais predatória em relação aos corpos, aos nossos corpos, aos territórios e à natureza.Temos desafios a enfrentar perante órgãos governamentais, institucionais e globais, porque também temos que ser claros perante esses órgãos que falam e dizem que são a favor da humanidade, mas, ao contrário, se colocaram a serviço do grande capital.

Fazemos um chamado urgente para nos unirmos e agirmos coletivamente diante de um sistema capitalista que continua a avançar de forma destrutiva e predatória. É vital que coloquemos a solidariedade, o respeito mútuo e a autocrítica no centro de nossa luta, pois somente assim poderemos construir um futuro mais justo e sustentável para todos. Os desafios globais que ameaçam nossa soberania alimentar e a justiça social não podem ser ignorados. Precisamos defender nossa terra, água, sementes nativas e práticas agrícolas sustentáveis transmitidas por gerações.

É ainda mais urgente promover uma economia feminista que respeite os direitos das mulheres e dos povos, e lutar contra um sistema extrativista e patriarcal que coloca em risco nossos recursos naturais e nossas vidas. Essa luta não é apenas para preservar o que temos, mas para mudar de rumo, promovendo uma visão crítica que nos permita transformar os sistemas atuais e adotar práticas mais justas, equitativas e sustentáveis, onde cuidamos de nossos corpos, de nossas comunidades e da natureza que nos sustenta.

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