Autonomia econômica das mulheres se refere à capacidade das mulheres de serem provedoras de seu próprio sustento, assim como das pessoas que delas dependem, e decidir qual é a melhor forma de fazê-lo. Nesse sentido, autonomia econômica é mais que autonomia financeira, já que também inclui o acesso à previdência e serviços públicos.
O salário não é a única fonte de nossa autonomia; ela depende de nossa formação, do acesso aos bens comuns, ao crédito, a economia solidária e aos serviços públicos. Produzimos riqueza não monetária que redistribuímos diretamente (sem passar pelo sistema financeiro formal): desde pequenas as mulheres dedicam uma grande parte de seu tempo para a satisfação das necessidades da sociedade, dos membros de suas famílias e de suas comunidades.
Apesar da criatividade das mulheres em luta por sua autonomia, muitas encontram restrições para consegui-la. Existem países, comunidades ou famílias nas quais elas precisam, por lei ou por costume, da autorização do pai, do marido ou de um homem da família para exercer um trabalho remunerado. Em muitos países as mulheres são menos escolarizadas que os homens e as meninas têm muitas dificuldades para permanecer na escola. Em outros países, a escolaridade das mulheres está aumentando, mas elas continuam mais desempregadas ou recebem menos do que os homens na mesma condição.
Além disso, em quase todo o mundo as mulheres são as principais responsáveis pelo chamado trabalho reprodutivo: de cuidado dos filhos, da casa, dos maridos, dos doentes e idosos. Em sua busca por autonomia econômica, as mulheres sempre têm que administrar o tempo e a disponibilidade para o trabalho de cuidado e para o trabalho remunerado. Por isso, muitas vezes se vêem limitadas a empregos de jornada parcial ou trabalhos informais que lhes permitem ir buscar as crianças na escola, levá-los ao médico, etc…
O trabalho das mulheres no mundo
As poucas informações sistematizadas que temos sobre o trabalho das mulheres estão focadas no trabalho formal e não no trabalho não remunerado. Sabemos que, na África Subsaariana, por exemplo, as mulheres trabalham muito. No entanto, os empregos com salários dignos e proteção social são exceções. Na África do Norte a participação das mulheres no mercado de trabalho é muito baixa porque a maioria das mulheres deve pedir permissão a um membro masculino da família para trabalhar fora de casa. A diferença de acesso ao emprego entre mulheres e homens é mais alta do mundo seguida pelo Oriente Médio[1]. Na América Latina e Caribe as mulheres trabalham principalmente no setor de serviços e muitas vezes, em empregos vulneráveis, e um grande número de mulheres trabalha no setor informal como artesãs, camponesas, vendedoras, etc. Os maiores índices de atividade das mulheres se dão na Ásia Oriental, Sudeste asiático e Pacífico e todos com jornadas de trabalho extensas. Na Europa, Estados Unidos, Canadá, Japão é maior a probabilidade de que as mulheres estão empregadas em posições de menor relevância que os homens e em jornadas de tempo parcial.
A exploração do trabalho das mulheres está na base da organização do sistema econômico capitalista neoliberal:
- As mulheres recebem sistematicamente menos que seus colegas homens pelo mesmo trabalho (seus salários ainda são considerados complementares aos salários dos homens – ver mais adiante o ponto sobre economia feminista). Tanto trabalhadores homens como mulheres se vêem obrigados a competir entre eles por trabalhos precários no sistema neoliberal permitindo, desta forma, a redução dos salários e das condições de trabalho em geral e em nível internacional;
- O trabalho é tipicamente precário: horas flexíveis, horas extras não pagas, trabalho em tempo parcial ou contratos de curto prazo; proibição de sindicalização, desrespeito a direitos adquiridos, falta de seguridade social e de medidas de saúde e de proteção trabalhista, etc;
- A força de trabalho das mulheres sustenta as indústrias de montagem (as maquilas) e a produção de legumes, frutas e flores em monoculturas para exportação. Também sustenta a indústria de serviços, que é atualmente o principal setor mundial de emprego de mulheres, em grande parte devido a migração das mulheres pobres para países ricos (sul ao norte; leste para oeste) em busca de emprego no setor doméstico ou de cuidados;
- As mulheres imigrantes enviam uma parte importante de sua renda para suas casas para manter a família em seu país de origem – estas transferências de dinheiro têm uma influência significativa na economia destes países. Portanto, sua emigração é impulsionada apesar do fato de que, em grande medida, as opções para as mulheres se limitam ao trabalho nas indústrias de serviços e sexual;
- A privatização dos serviços públicos e o corte nos gastos públicos em saúde, educação, serviços de cuidado das crianças, saneamento básico e água resultou em um aumento do trabalho doméstico e comunitário realizado pelas mulheres;
- Pelo menos 12,3 milhões de pessoas em todo o mundo estão presas em trabalhos forçados, o que inclui as seguintes formas: endividamento, tráfico de pessoas (que depois do tráfico de drogas é a segunda maior máfia mundial, com U$S 10 bilhões de lucros por ano) e outras formas de escravidão moderna. As vítimas são os setores mais vulneráveis – mulheres e crianças forçadas a prostituição, imigrantes presos por endividamento e trabalhadores de maquila ou do campo que sofrem com táticas ilegais, recebendo pouco ou nada.
A recente crise de alimentos, ambiental, energética e financeira – conseqüência direta do sistema neoliberal de exploração e especulação – tem reduzido as possibilidades de que as mulheres encontrem empregos, aumentado a precariedade dos empregos que existem e os níveis de pobreza para mulheres e homens.
Economia feminista como principio
A economia feminista coloca a sustentabilidade da vida humana e o bem-estar coletivo no centro da organização econômica e territorial. Questiona a sociedade de mercado, na qual o padrão de relação entre as pessoas, destas consigo mesmas e com seu corpo e destas com a natureza é um negócio no qual o que importa é o lucro. Ela se soma a outros questionamentos à ordem econômica atual, como a economia solidária e a soberania alimentar, para criar novas práticas e novas sínteses teóricas.
As feministas questionam os paradigmas da economia dominante, que reconhece apenas a produção mercantil (os bens e serviços que são vendidos no mercado), entendida como resultado da ação de agentes econômicos “livres e iguais” que atuam privilegiando interesses individuais, maximizando a utilidade ao menor custo. Esses pressupostos podem se aplicar a um homem branco de 30 e poucos anos, que goza de boa saúde e possui capital, porém não representam a maior parte da humanidade. Mesmo sem sustentação na realidade, são esses paradigmas os que orientam as políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial, da Organização Mundial de Comércio (OMC) e da maioria dos governos do mundo.
A economia feminista é útil para visibilizar as experiências das mulheres e sua contribuição para a economia, além de mostrar como a produção mercantil não está desvinculada da reprodução, ou seja, a produção das pessoas e da vida. Isso inclui desde a gravidez e o parto, ao cuidado das crianças, doentes e idosos e mesmo dos homens adultos para que estejam disponíveis e saudáveis para trabalhar no mercado. Cuidado implica não só a alimentação, limpar a casa, lavar e passar, mas também o afeto, a segurança emocional e a sustentação da rede social que mantém juntas as famílias, vizinhos e comunidades.
A economia feminista questiona o fato de haver uma divisão sexual do trabalho, que atribui aos homens o trabalho produtivo (a produção de mercadorias) e às mulheres o trabalho reprodutivo (o cuidado das pessoas), além de estabelecer uma hierarquia na qual o trabalho produtivo é considerado mais importante que o reprodutivo. Há correntes que buscam quantificar o trabalho não remunerado das mulheres na família e na comunidade e pressionam por sua inclusão nas contas nacionais, nos cálculos do produto interno bruto e nos orçamentos. Outras buscam visualizar tanto o tempo que as mulheres dedicam ao trabalho doméstico como sua disponibilidade emocional e física para o cuidado do outro. A economia feminista também mostra como valores de cooperação e reciprocidade, e habilidades, como destreza, flexibilidade ou paciência, são utilizados na pelas empresas. Entretanto, isso não é revertido em benefícios (seja mais responsabilidade, melhores salários, etc) quando se referem às mulheres para quem esses valores e habilidades são tradicionalmente vistos como “naturais” e não aprendidos desde pequenas.
Para ter autonomia econômica
Os governos e os que formulam políticas econômicas não consideram que as mulheres têm pleno direito ao trabalho remunerado. Partem do pressuposto de que as pessoas vivem em famílias tradicionais (pai, mãe e filhos). Neste modelo, o pai assegura o sustento da família com seus ganhos e a mãe, depois de haver feito todo o trabalho doméstico, pode trabalhar por algum dinheiro “extra” que servirá de ajuda. Isto está muito longe da realidade. Ao contrário do que diz a visão dominante de que são os homens os únicos provedores de suas famílias e comunidades, muitas mulheres sustentam sozinhas suas famílias ou compartilham o sustento com seu companheiro ou outras pessoas adultas.
Para que todas as mulheres tenham autonomia econômica temos que construir uma sociedade na qual o trabalho – em todas suas formas – seja reconhecido e valorizado. Hoje, as riquezas produzidas através do trabalho humano, se concentram nas mãos dos possuidores do capital (donos de bancos, empresários, etc) por meio de lucros. Nós reivindicamos a inversão desta lógica e que essas riquezas sejam utilizadas para a remuneração do trabalho.
Compreendemos que a autonomia econômica para todas as mulheres nunca será possível dentro do sistema capitalista, cuja verdadeira razão de ser se baseia na exploração das pessoas e do meio ambiente. Nossas ações e propostas têm como objetivos a distribuição das riquezas, o direito de todas e todos ao emprego, a condições de produzir e comercializar com dignidade, a possibilidades de crescimento pessoal, e também o direito ao tempo livre.
Queremos uma sociedade com pleno emprego para mulheres e homens, em que as e os jovens não tenham que começar tão cedo a trabalhar por uma remuneração. Uma sociedade na qual as pessoas tenham tempo livre suficiente para si mesmas e para participar na comunidade. Uma sociedade onde aquelas e aqueles que querem da agricultura, artesanato, pequeno comércio ou grupos produtivos associativos, possam sustentar-se sem serem engolidos pelos bancos, por grandes empresas, e em especial pelas transnacionais, que querem concentrar os recursos em suas mãos. Queremos que o Estado tenha políticas para garantir renda em situações de doença, de desemprego, licença maternidade e paternidade, aposentadoria (proteção social universal).
Entretanto, estas políticas só serão efetivas em países e regiões em paz. A violência e a ameaça de violência é o maior obstáculo para conseguir a autonomia econômica. Destrói as formas de sustento, deixa populações inteiras desempregadas, mantém as mulheres prisioneiras em suas próprias casas e promove fundamentalismos de todo tipo (que por sua vez reduz a liberdade de deslocamento das mulheres e as possibilidades para conseguir autonomia econômica). Reivindicamos o fim da militarização de nossos países e de nosso planeta, do imperialismo, dos conflitos e guerras intermináveis que ocorrem para controlar territórios, ou recursos naturais, ou populações, ou o poder político…Só na ausência de conflito a autonomia econômica para todas as mulheres e homens pode transformar-se em uma realidade.
Em luta por autonomia econômica das mulheres, demandamos:
- Direito de todas as trabalhadoras e trabalhadores – incluindo as e as vulneráveis como domésticas e migrantes – ao emprego com condições de saúde e proteção trabalhista sem assédio e no qual sua dignidade seja respeitada, em todo o mundo e sem discriminações de nenhum tipo (nacionalidade, sexo, deficiência, etc).
- Direito a Seguridade Social, incluindo o pagamento de benefícios em caso de doenças, incapacidade, licença maternidade e paternidade, e programas de renda mínima que permitam que as mulheres e homens tenham qualidade de vida decente;
- Salários iguais para o mesmo trabalho de homens e mulheres, incluindo as remunerações pelo trabalho em zonas rurais;
- Salário mínimo justo (para diminuir a diferença entre salários mais altos e mais baixos e assegurar que todas e todos vivam com dignidade com as pessoas que são seus dependentes) instituído por lei que sirva como referência para todo o trabalho remunerado (público e privado) e prestação de serviços sociais públicos. Criação ou fortalecimento de uma política de valorização permanente do salário mínimo, com valores comuns para sub-regiões ou regiões;
- Fortalecimento da economia solidária, com crédito subsidiado, apoio para a distribuição e comercialização e intercâmbio de conhecimento e práticas locais;
- Acesso das mulheres à terra, sementes, água, matéria prima e todo o apoio necessário para a produção e comercialização na agricultura, pesca y criação, assim como no artesanato.
- A reorganização do trabalho doméstico e de cuidados para que a responsabilidade por este trabalho seja compartilhada entre homens e mulheres dentro da família e da comunidade. Para que isso se torne realidade, demandamos a adoção de políticas públicas que apóiem a reprodução social, como creches, lavanderias coletivas e restaurantes, cuidados para idosos etc., assim como a redução da jornada de trabalho sem redução dos salários.
Estamos comprometidas a:
- Construir ou fortalecer alianças com o movimento sindical;
- Denunciar a exploração e dar visibilidade aos direitos das trabalhadoras e trabalhadores migrantes –domésticos e trabalhadores subcontratados a domicílio;
- Denunciar o papel das empresas transnacionais na exploração do trabalho das mulheres, através, por exemplo, da organização de campanhas de boicote aos produtos dessas companhias (junto com as trabalhadoras para que os boicotes sejam utilizados para a negociação de melhores condições de trabalho);
- Debater e criar formas de superar a divisão sexual do trabalho, a naturalização do trabalho das mulheres na esfera privada, e a valorização do trabalho produtivo sobre o trabalho reprodutivo, criando as condições necessárias para que as mulheres tenham mais tempo livre para o ócio e a participação cidadã.
[1] Segundo dados da OIT (Organizaçao Internacional do Trabalho) em 2007, considerando a média mundial das pessoas em idade para trabalhar, apenas 49,1% das mulheres estavam empregadas frente a 74,3% dos homens. A relação emprego-população de mulheres varia nas subregiões do mundo: é mais alta na Ásia Oriental (65,2%) e África Subsaariana (56,9%) e mais baixa na África do Norte e Oriente Médio (28,1%). Empregadas, são as mulheres que realizaram algum trabalho – pelo menos uma hora durante o período de referencia especificado – por um salário (trabalho remunerado) ou por lucro ou benefício familiar (trabalho independente).