Companheiras,
Este texto é uma síntese da análise de conjuntura fruto da última na reunião presencial da coordenação nacional da MMM em dezembro de 2024, Belo Horizonte – MG. Deixamos aqui o arquivo do texto e o convite à leitura para nos inspirar em nossos processos de atuação e articulação!
O mundo vive mais uma crise de seu sistema econômico, crise esta que vem ganhando novos contornos desde a quebra da bolsa estadunidense em 2008. Se as crises podem ser consideradas próprias do sistema econômico, dada a necessidade dela para reinventar a lógica de acumulação e recompor as taxas de lucro, no atual cenário, mais do que recorrente, a crise parece ser um estado permanente. Caracterizamos esta conjuntura como um momento de um imperialismo decadente e perigoso.
Apontamos a sua decadência, pois a proposta imperialista de um mundo unipolar se encontra cada vez mais fragilizada. A lógica da financeirização e do aumento exponencial do capital fictício e da especulação aumenta a recorrência dos desequilíbrios econômicos ao redor do mundo. Mesmo que vejamos operar as corporações transnacionais mais lucrativas da história, isto não tem se revertido em riqueza real para as nações e para a principal potência global, os Estados Unidos.
A dinâmica imperialista que sustenta o neoliberalismo neste mundo unipolar se balança quando a desaceleração do crescimento econômico dos EUA acontece concomitantemente ao período em que uma outra configuração vem se desenhando para o mundo: a China se consolida como potência global, com crescimento sólido e como um dos principais parceiros comerciais da maior parte dos países do mundo. A nível institucional, países fora do eixo do Norte global tentam construir alternativas para superar a dependência e que sejam capazes de estabelecer relações não subordinadas ao império e sua moeda, sendo o BRICS a principal estrutura desenvolvida até então. Nota-se ainda uma crescente das lutas independentistas no continente africano e uma fragilização da Europa, ambas as situações contribuindo para a reconfiguração internacional.
No caso da América Latina e do Brasil, este cenário se materializa de forma particular. Visualizamos um continente em disputa, em parte tentando sair da condição de subordinação ao vizinho imperialista, em parte sempre enfrentando as novas facetas que a direita adota a nível internacional sendo testadas por aqui. A proximidade geográfica com os EUA faz com que a ofensiva seja também constante, desta forma, nossa democracia e soberania parecem estar sempre sob ameaça.
Este cenário que parece flutuante entre articulações institucionais se materializa de forma concreta na vida das mulheres e dos povos, a exemplo da crescente das guerras. Na busca por reafirmar-se como a principal potência econômica, política e militar do mundo, os EUA adotam uma postura intervencionista e, sobretudo, bélica. Os conflitos são múltiplos e cada vez mais violentos: guerra entre Rússia e Ucrânia (com esta sendo fortemente apoiada pelos EUA e pela OTAN); e a tentativa de extermínio do povo Palestino, que enfrentou mais de um ano ininterrupto de bombardeio, num conflito que se estendeu para outros países da região são exemplos disso e tem Israel, aliado de primeira ordem dos EUA, como protagonista nos ataques e mortes. O continente africano também passa por um momento conflituoso: entre milícias armadas e movimentos anticoloniais, diversos países vivem um cotidiano militarizado.
As guerras conectam muitas dimensões da crise, pois envolvem política, economia e natureza. Mais além, a banalização das mortes causada pela militarização escancara o aprofundamento do conflito entre o capital e a vida, há muito apontado pela Marcha Mundial das Mulheres. Assim, fica cada vez mais evidente que a organização do capital, para sustentar suas estruturas, relações de poder e parâmetros de acumulação, são incompatíveis com a vida: não apenas uma vida digna, que valha a pena ser vivida, mas também a vida em seu sentido mais literal.
Este cenário reverbera também no Brasil. Há um aprofundamento da militarização nos territórios, tanto na cidade quanto no campo. Nas cidades, vemos o conflito entre o Estado e os poderes paralelos (tráfico e milícia sobretudo, esta última muitas vezes se intitula como Estado de Israel) se alastrar pelas periferias de vários estados do país, aprofundando um projeto de morte e encarceramento da população negra e, nota-se ainda a relação da polícia militar com a polícia israelense, tanto no treinamento como no aparato armado. No campo, temos visto uma crescente da violência contra lutadores e lutadoras, aumento dos ataques armados nos assentamentos e cada vez mais atentados a territórios indígenas.
Quando falamos de vida, nos referimos à vida humana, mas também à natureza. Há uma grande preocupação internacional em relação à crise climática e a velocidade de aquecimento do planeta, todavia o problema ambiental é muito maior do que o clima. A natureza e as pessoas que dela e nela vivem têm sido impactadas em todo as nuances da crise. A corrida econômica e exploratória, a destruição total dos solos agricultáveis junto à absurda poluição geradas pelas guerras, a privatização dos bens comuns e a transformação de tudo em commodity. Todos estes elementos exercem impacto direto sobre o meio ambiente e se materializam em diversos desastres-crime ao redor do mundo, a exemplo dos alagamentos no Rio Grande do Sul.
A dimensão econômica também é latente nesta conjuntura. Denunciamos os bloqueios e sanções econômicas, a exemplo de Cuba e Venezuela, e da dívida, tão comum aos países da região. A crise em tempos de financeirização – junto a herança colonial que mantém a maior parte do Sul em condição de pobreza – tem posto diversos países em situação de endividamento em relação às instituições financeiras internacionais, sobretudo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), estes, por sua vez, cobram suas dívidas impondo condições políticas e econômicas, imprimindo uma agenda de austeridade ao mundo.
Tal agenda de austeridade vigente no mundo se manifesta na realidade das pessoas com profunda precarização da vida, perda de bens e serviços outrora públicos, que agora passam a ser privatizados e/ou transformados em commodities. A teoria marxista aponta que o trabalho é sempre ferramenta de ajuste da acumulação. Assim, o trabalho pago vive uma remodelação ao redor do mundo, articulando as crises de demissão em massa deste milênio com o recente processo de uberização. Frente a isso, diversos países têm rediscutido sua agenda de trabalho, resultado em afrouxamento regulatório e perda de direitos, neste setor e em outros relacionados a ele, como na previdência. Desde o Brasil, vimos estes dois setores terem reformas avassaladoras na última década.
As feministas trazem à tona, porém, que esta realidade não se limita ao trabalho pago. Quando a pressão para a redução do gasto público reduz a oferta e a qualidade dos serviços públicos oferecidos nos países, as mulheres são silenciosamente responsabilizadas por realizar estas atividades necessárias para a sustentabilidade da vida. Mais uma vez, o trabalho é ferramenta de contenção da crise, mas aqui visualizamos uma crescente do trabalho reprodutivo, realizado pelas mulheres quase sempre de forma gratuita ou com baixíssima remuneração no interior dos lares.
A ausência de saúde, cuidado dos idosos, creches, escolas em tempo integral, políticas de alimentação, dentre outras, logo se transforma em aumento do trabalho doméstico e, consequentemente sobrecarga dessas mulheres que sustentam a vida enquanto cada vez mais têm suas vidas precarizadas. Isso se acentuou com a dinâmica doméstica estabelecida pela pandemia. A pandemia acaba, mas os trabalhos permanecem. O desmonte das condições de trabalho com a sobrecarga do cuidado se materializa de forma contundente na vida das trabalhadoras domésticas, sempre retratadas no feminino, pois 92% da categoria é de mulheres, sendo 66% mulheres negras. Os direitos trabalhistas recém adquiridos com a PEC das Domésticas entraram em questão após a Reforma Trabalhista e, na prática, a remuneração dessas mulheres têm caído, a ponto da maioria da categoria apresentar renda inferior a um salário-mínimo, mesmo que o trabalho de cuidado seja cada vez mais necessário.
Esta dinâmica econômica austericida e misógina dialoga com a alternativa que o capital e o império têm utilizado para se reposicionar política e economicamente no mundo. Com a incapacidade do modelo neoliberal para superar as crises e as demandas cotidianas das vidas das pessoas, um novo-velho posicionamento passa a crescer e se consolidar no mundo: a extrema-direita e o fascismo.
O modelo austericida se articula com o conservadorismo e aponta as mulheres como inimigas. As principais lideranças de extrema-direita ao redor do mundo atacam violentamente os direitos das mulheres, as políticas ligadas ao gênero, o direito ao aborto e à autonomia econômica. A articulação entre conservadorismo e mercado podem ser visualizadas a exemplo da aliança das igrejas evangélicas e das direitas com o bolsonarismo no Brasil, assim como o posicionamento das principais corporações internacionais em alinhamento a Donald Trump, a exemplo de Mark Zukeberg e a Meta, Elon Musk e seu conglomerado (X, SpaceX, openAi e Tesla), Jeff Bezos e Amazon, dentre outros. que passam a adotar abertamente uma política racista e fascista. A posse de Trump e suas medidas sequentes escancaram o teor misógino, racista, fascista e xenofóbico deste segmento.
Nacionalmente, vemos este cenário de disputa materializado. A postura intervencionista estadunidense foi um dos elementos influenciadores do golpe de 2015, que desencadeou os desmontes do governo Temer que até hoje vivemos. Na sequência, a eleição de Bolsonaro representou a consolidação da extrema-direita no país, com seus valores antidemocráticos e conservadores. Vemos também a ofensiva do mercado atualmente durante o governo Lula, que tem tido dificuldades de enfrentar esta conjuntura complexa.
Eleger Lula após a completa destruição estabelecida pelo desgoverno de Bolsonaro foi um respiro de esperança para a população após o cenário devastador que o país enfrentou desde o golpe de 2015, mas o governo ainda não tem dado conta de enfrentar os desafios apresentados. Em que pese os dados de crescimento econômico, há ainda uma sensação de que a vida está difícil e cara, com destaque para o custo de vida e o preço dos alimentos.
Há um aumento do emprego, mas as condições estabelecidas pela reforma trabalhista fazem com que se viva para trabalhar ao invés de trabalhar para viver. Recentemente, a luta pela redução da jornada de trabalho com o movimento contra a escala 6×1 foi exemplo emblemático disso, mas sabe-se ainda que há um aumento de outros vínculos de trabalho, como os trabalhos PJ/MEI e trabalhos informais, nestes muitas vezes sequer há uma jornada estabelecida.
Recentemente, celebramos a aprovação da política nacional de cuidados, mas apresentamos preocupação pelos acordos travados para que o projeto fosse aprovado na câmara, como por exemplo retirar as partes que falavam de divisão sexual do trabalho (principal motivo para a criação da política) e qualquer coisa relacionada a gênero. Nos preocupamos ainda com a garantia do orçamento para que estas políticas possam de fato transformar a vida das mulheres brasileiras, cada vez mais sobrecarregadas com o trabalho doméstico, como já apresentado. O orçamento é uma questão, pois a política econômica do governo diversas vezes tem apostado no corte de gastos para solucionar suas taxas de crescimento. Vemos o pacote de cortes e a redução do BPC como políticas equivocadas na teoria e na prática, pois precarizam a vida das pessoas ao passo que impedem o desenvolvimento e afetam sobretudo a vida das mulheres negras e rurais, que muitas vezes trabalharam toda uma vida na informalidade e agora perdem o mínimo direito à autonomia.
O governo Lula, eleito pelas mulheres e pelos movimentos sociais, precisa se comprometer com uma transformação real da vida. O direito ao aborto, tão duramente atacado pela extrema-direita, não pode ser um constante estado de alerta para as mulheres num país que tem um governo eleito por elas. Por isso, exigimos não apenas que o aborto legal se mantenha assegurado, mas que qualquer mulher que deseje interromper sua gestação tenha seu direito garantido, sem correr risco de ser presa ou morrer na clandestinidade, como ainda ocorre com tantas mulheres, sobretudo mulheres negras. Ao contrário do que a extrema-direita tem bradado ao redor do mundo, o aborto não diz respeito à religião, mas à autonomia das mulheres e seu direito à vida e à saúde.
Apesar de dialogarmos e cobrarmos às instituições, sabemos que a transformação da vida das mulheres não se dará por outro caminho que não a luta popular. Nós, da Marcha Mundial das Mulheres, sabemos que a luta só cresce quando é feita em aliança, por isso, apontamos a necessidade de uma maior articulação dos movimentos sociais, capaz de enfrentar a conjuntura em que vivemos. Ajustar a leitura da conjuntura em unidade é o primeiro passo, mas visualizar as agendas e articular as lutas é também fundamental.
Acreditamos que teoria e prática caminham juntas, por isso, à medida que formulamos, nos apresentamos para a luta cotidiana nas ruas, nas redes, no campo e na cidade. Para enfrentar a crise econômica, apresentamos a economia feminista. A solução para as crises e para a economia não será possível seguindo o mesmo modelo econômico, e nem se dará com a manutenção das desigualdades e do ritmo atual da produção capitalista. Neste sentido, as mulheres propõem a economia feminista como uma alternativa de subversão da lógica produtiva e da organização do trabalho reprodutivo hoje. Como tem apontado a formulação das mulheres negras, mais do que viver, queremos o bem viver!
Para enfrentar a fome e a destruição desenfreada da natureza, apontamos a agroecologia. Para superar as guerras, invocamos a superação do imperialismo e nossa solidariedade através do nosso feminismo internacional, que conecta a realidade cotidiana com a leitura global desta conjuntura como de resistência e fortalecimento das mulheres em seus territórios para construir uma vida livre de violência. Neste sentido, anunciamos nossa 6ª ação internacional, desde o Brasil, denunciando a ofensiva do capital sobre nossos territórios e anunciando a alternativa feminista construir o outro mundo possível que acreditamos!
Seguiremos em marcha contra as guerras e o capital, por soberanias populares e bem viver!