Hoje, 18 de novembro, as mulheres negras estão em marcha em Brasília: contra o racismo, a violência e pelo bem viver!
O sentido do bem viver para nós: mulheres negras!*
Bem-viver é o que nós, mulheres negras, proporcionamos ao mundo a partir do nosso trabalho, do que construímos de resistência, de identidade, de cultura política. Transformamos miséria em fartura, dores em novas cores, ódio em amor, mortos em deuses. Viemos reinventando o mundo com uma incrível capacidade de produzir síntese entre a ancestralidade e a projeção de novo mundo na luta contra o sistema capitalista, patriarcal e racista. Um mundo mais igualitário, mais equilibrado e mais solidário não será possível sem a assimilação da experiência que nós, mulheres negras, enquanto sujeito histórico, enquanto potência social, significamos.
Limpamos as feridas das chibatadas e organizamos o equilíbrio das senzalas. Carregamos em nossos corpos e nossas práticas a tarefa de manter viva a cultura, a ancestralidade e as sociabilidades usurpadas de África. Chegando ao Brasil, multiplicamos conhecimentos com mulheres de outras etnias, cujos territórios também foram estuprados pelo colonizador racista e patriarcal e continua sendo pelo capitalismo contemporâneo das grandes empreiteiras.
Boa parte de nós continuamos limpando: casas dos outros, nossas casas, ruas, instituições públicas, privadas. Limpamos a barra de nossos maridos, limpamos a barra de nossas famílias. Resolvemos a vida de todos e todas. Continuamos sendo estupradas, extorquidas, secundarizadas. Nossos filhos morrem nas periferias, nossas filhas, na fila do hospital ou no quarto de casa pelo aborto clandestino, pela violência doméstica ou militarizada.
O Mapa da Violência 2015 não traz boa notícia: estamos morrendo; estamos sendo mortas. Em dez anos, aponta a pesquisa, os assassinatos de brasileiras negras cresceram 54%, já as mortes de mulheres brancas caíram 9,8%. Isto significa que o patriarcado avança por dentro do racismo e que não temos conseguido preservar a vida das mulheres em sua diversidade.
O paradoxo é: como, mesmo com tudo isso, conseguimos ser o expoente de uma nova e ancestral sociabilidade de paz e coragem? Como fomos capazes de inventar tamanha tecnologia social de sobrevivência? Como conseguimos entrar nas universidades e, em tão pouco tempo, mudamos a cara do ensino superior? Como conseguimos adentrar as redes sociais e AFROntar toda a sociedade racista e machista com nossos blacks e turbantes de rainha? Como conseguimos nos juntar em milhares nas ruas para dizer que nossa estética é uma enorme ferramenta política? Como conseguimos chegar até aqui vivas e com grandiosas perspectivas de provocar uma revolução mundial?
Nós, mulheres negras da Marcha Mundial das Mulheres, apostamos em uma resposta: conseguimos tudo isso estando com nós mesmas. Estando juntas. Viemos de famílias de mulheres. Nossas sobrevivências foram forjadas em redes de mulheres. Mães, tias, avós, vizinhas, amigas, irmãs, primas. Redes de solidariedade: para o leite, para o emprego, para a cesta básica, para o hospital, para o citotec, para a delegacia, para a mensalidade da faculdade, para as filas, para os exames, para os almoços, para as cozinhas, para os sobrados, os sabores, os saberes. Redes dos amores. Somos muitas, somos tantas. Este é o feminismo construído em nossa vivência.
A auto-organização continuará sendo a estratégia para estarmos mais fortes como mulheres negras, como mulheres feministas e em movimento. Para enfrentarmos os militares, as hidrelétricas, o monopólio midiático, os discursos racistas, o encarceramento, os estupradores, os perseguidores, as especulações, as remoções, os tiros e as bombas de canhão, a solidão. Sim, não há melhor companhia que a nossa. Há uma narrativa sobre nossa solidão estar calcada na rejeição dos homens, mas também acreditamos que os relacionamentos no modelo patriarcal além de não resolver a nossa solidão, pode aprofundá-la ainda mais. Na nossa opinião, o feminismo é a grande ferramenta de superação da solidão.
A nossa unidade e força ancestral provoca o mundo, e provocará a derrubada da PEC 171, contra a redução da maioridade penal, a desmilitarização da vida das mulheres, a luta contra a PL 5069 que legaliza a violência sexual, construindo assim novos caminhos, como uma nova política de drogas no Brasil e no mundo, que não criminalize a nossa população, mas seja construída através dos marcos da valorização da saúde e dos direitos humanos, incluído o povo negro na categoria de humanidade. Autonomia econômica, mudança no sistema político, valorização do nosso conhecimento e reconhecimento do nosso papel na construção desta sociedade que nos subjuga por medo. Medo da nossa potência de transformação e destruição do modelo de sociedade hegemônico.
Somos mulheres negras em marcha, na construção cotidiana de um feminismo anti-racista e anti-capitalista, até que todas sejamos livres!
*Editorial do jornal da Marcha Mundial das Mulheres.