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Oficinas temáticas no Vale do Ribeira apontam estratégias para a construção de um mundo mais justo para as mulheres

Oficina "Feminismo e Agroecologia" | Foto: Helena Zelic
Oficina “Feminismo e Agroecologia” | Foto: Helena Zelic

No segundo dia da IV Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, em Registro, no Vale do Ribeira, as 400 mulheres presentes participaram de oficinas temáticas divididas em onze pautas. Alem de discutirem a organização das mulheres na resistência às diferentes formas de controle de seus corpos, sua vida e trabalho, apresentaram as alternativas feministas de enfrentamento a esta realidade, tanto as que já estão em curso quanto as que ainda podem ser melhor estruturadas e desenvolvidas a partir da auto-organização das mulheres. Nesta atividade, elas também produziram materiais e palavras de ordem que foram utilizados no ato político realizado na tarde de sábado, que ocupou as ruas do município e fechou um trecho da BR-116, encerrando os dois dias de intensa atividade de formação feminista.

Confira o conteúdo das discussões em cada uma das oficinas:

. Saúde das mulheres: enfrentando as intervenções e o controle dos nossos corpos
. Em defesa dos nossos territórios: a resistência ao agronegócio e às grandes obras
. Autonomia econômica: resistências e alternativas de valorização do trabalho das mulheres
. Enfrentamento à violência contra as mulheres: estratégias feministas
. “Somos mulheres e não mercadoria”: a resistência feminista à mercantilização da vida
. Construindo o feminismo anti-racista
. Autonomia das mulheres: a maternidade como decisão
. Por uma sexualidade livre e sem imposições
. Feminismo e agroecologia: a experiência das mulheres na construção de práticas agroecológicas
. O papel das mulheres na luta pela desmilitarização
. Desafios feministas frente à ofensiva conservadora na política, no trabalho e na vida

 

Saúde das mulheres: enfrentando as intervenções e o controle dos nossos corpos
Com tema tão importante quanto abrangente, esta oficina abordou vários temas, com destaque para duas importantes conquistas que contribuíram em diversas pautas da luta das mulheres: o Sistema Único de Saúde (SUS) e os contraceptivos. No entanto, ainda que tenham representado importantes avanços no acesso da mulher à saúde e na maior autonomia sore a maternidade, estas e outras conquistas merecem constante acompanhamento das mulheres, dada a apropriação do sistema capitalista a estas vitórias. Na oficina, a perspectiva feminista de alternativa para que o direito à saúde seja integral é que o conceito de saúde evolua para além da ausência de doenças e represente um equilíbrio biopsicossocial – e, para a mulher, uma total autonomia sobre o seu corpo. É urgente que seja constante a resistência à medicalização que, entre outras coisas, promove o controle do corpo das mulheres desde o nascimento até o envelhecimento e as submete a alternativas farmacêuticas para que seus corpos suportem o excesso de jornadas de trabalho dentro e fora de casa. É urgente também que a autonomia possibilitada pelos contraceptivos seja ampliada com a garantia efetiva dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Também foram apontadas como importantes pautas na luta das mulheres por melhorias na saúde a inclusão de práticas integrativas e complementares no SUS, o fortalecimento das políticas relacionadas ao parto humanizado e erradicação da violência obstétrica, além da necessaria ampliacao das discussões sobre a legalização do aborto. Também foram abordados a soberania alimentar, o direito a água e o combate aos transgênicos, além do controle do corpo da mulher pela indústria da beleza.

 

Em defesa dos nossos territórios: a resistência ao agronegócio e às grandes obras
Nesta oficina, as participantes discutiram os impactos na vida da mulher causados por grandes obras, como os megaprojetos de barragens, rodovias, entre outros. Foram abordadas as várias violências a que são submetidas as mulheres: o não reconhecimento de todas as formas de trabalho das mulheres nas comunidades afetadas por estas obras, sem a devida indenização quando ocorre desapropriação dos territórios onde vivem e produzem; o aumento da violência sexual e gravidez precoce em razão da maior presença de homens nestas obras; o impedimento de roçados de agricultura de subsistência, em nome de uma suposta preservação ambiental que, na verdade, pretende criar parques privados que comercializam a natureza. Neste sentido, as mulheres do Vale do Ribeira contribuíram de maneira importante, já que a região resiste há mais de 30 anos à construção de barragens em seus territórios, com forte participação das mulheres de comunidades tradicionais indígenas, quilombolas, camponesas e ribeirinhas, que permanecem na luta pela titulação de suas terras, em resposta à pressão de empresas para a concessão de licenças ambientais para a realização de obras de infraestrutura.

Como alternativa ao avanço mercantilista que ameaça a natureza, a discussão evoluiu para a importância da luta das mulheres pela construção de um mundo diferente, a partir da manutenção e fortalecimento da agricultura familiar, do artesanato e outras práticas de subsistência nas comunidades tradicionais, além da pressão para que as obras de infraestrutura facilitem a vida em comunidade, onde possam ser produzidos e comercializados alimentos de forma justa, com mobilidade e aprofundamento de laços comunitários, em harmonia com a natureza.

 

Autonomia econômica: resistências e alternativas de valorização do trabalho das mulheres
A oficina retomou a história da construção da sociedade, em que os homens assumiram o controle da propriedade, da produção e da comercialização, enquanto às mulheres restou a reprodução da vida e o ambiente doméstico, no qual a força de trabalho é invisibilizada, ainda que seja essencial. A discussão prosseguiu a partir de paralelos desta história com o contexto atual das mulheres, que ainda são a enorme maioria nos trabalhos de cuidados, têm seus trabalhos desvalorizados em quaisquer áreas e fazem duplas ou triplas jornadas.
A alternativa a esta situação, com o objetivo de conquistar a autonomia econômica, é que as mulheres deixem de vender sua mão de obra sob exploração e passem a produzir em um outro modelo econômico. A Economia Feminista e Solidária é, portanto, uma ferramenta para a autonomia das mulheres, pois une as mulheres em associação para produzir e vender de forma mais justa.

 

Enfrentamento à violência contra as mulheres: estratégias feministas
Aqui, foram discutidas as diferentes causas que naturalizam a violência contra as mulheres em diferentes esferas, como o moralismo que as culpabiliza pelos abusos que sofrem, as barreiras à autonomia financeira, a violência psicológica que afeta sua auto-estima, os padrões de beleza e comportamento impostos pela mídia, especialmente nas peças publicitárias e produtos de entretenimento, a responsabilização apenas para a mulher do controle de natalidade, entre outros.

Como as causas eram bastante conhecidas pelas participantes desta oficina, boa parte da discussão se voltou para as alternativas no enfrentamento desta violência sob uma perspectiva feminista. A base das propostas apresentadas se estruturam no pilar do fortalecimento das mulheres, a partir da formação feminista e da auto organização, que colocam as mulheres como sujeito de sua história. Foram reconhecidos os avanços nas políticas públicas para mulheres, a partir da implementação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2003, pelo Governo Federal. Mas foi enfatizada também a necessidade da ampliação de políticas que garantam os direitos das mulheres, além da aplicação efetiva das políticas existentes. Os cursos de Promotoras Legais Populares (PLPs) têm destaque neste processo. Assim, as mulheres possuem a importante tarefa do acompanhamento e da cobrança do comprometimento dos governos municipal, estadual e federal na aplicação das políticas publicas.

 

“Somos mulheres e não mercadorias!”- a resistência feminista à mercantilização da vida.
Nesta oficina, foi reforçada a importância da resistência feminista no rompimento com a lógica capitalista que mercantiliza os corpos, vidas e sexualidades das mulheres. Ao vender sua força de trabalho, as mulheres são forçadas a adequar seus corpos a exigências que as colocam como “cartão de visita” no ambiente corporativo, a partir da cobrança da boa aparência, com maquiagens, trajes e penteados específicos, além da forma física padronizada. Foi discutida a banalização da imagem de mulher promovida pela mídia, que muitas vezes nos equipara a produtos à venda. A prostituição também foi tema de discussão, por representar a exploração e a apropriação do corpo das mulheres em seu mais alto e violento grau.

Como alternativa feminista para o combate à mercantilização da mulher foi destacada a organização para a desnaturalização da exploração dos corpos das mulheres, a partir da ampliação de políticas públicas para as mulheres, que garantam educação para as questões de gênero e autonomia financeira. A militância feminista possui um importante papel nas ações de combate a esta mercantilização.

 

Construindo o feminismo anti-racista
Foram levantadas estratégias das mulheres negras para o combate ao racismo, que se alia ao patriarcado. São estas mulheres as principais vítimas da objetificação e hipersexualização, da violência obstétrica, entre outras situações.

A principal alternativa feminista gira em torno da importância de posicionamento das feministas enquanto feministas anti-racistas, pois apenas desta forma será feito o devido recorte das peculiaridades da violência sofrida pela mulher negra. Outras alternativas, também urgentes, são a luta das feministas para a criação de órgãos e espaços de denúncias, além da ampliação da atuação da Marcha Mundial das Mulheres nas periferias.

 

Por uma sexualidade livre e sem imposições
Nesta oficina, as mulheres apresentaram suas vivências em relação à sexualidade e as barreiras impostas pelo moralismo e conservadorismo diante de sua livre expressão, tanto para mulheres heterossexuais, mas também – e principalmente – para as mulheres lésbicas, bissexuais e trans. Foi abordado o conservadorismo que se expressa nas várias formas de controle do corpo e da sexualidade das mulheres, como a maternidade compulsória, a invisibilização do prazer feminino, a transfobia, lesbofobia e a bifobia. Na discussão, foi bastante rica a contribuição de cada uma das mulheres que compartilharam suas vivências na busca por formas de afeto que não reproduzam as dinâmicas de poder e opressão a que são submetidas ao longo de suas vidas.

Muitas das participantes eram educadoras e jovens estudantes, o que acabou por destacar o ambiente escolar como agente fundamental para a transformação social e o seu papel como uma das principais alternativas de combate ao avanço do conservadorismo – principalmente aquele promovido pelo discurso religioso, responsável pela construção moral de grande parte da população brasileira. Foi sinalizada a importância do conhecimento, a partir da formação integral, social e cidadã, dos educadores, para além do conteúdo técnico e teórico, que colaboraria para a não reprodução, em ambientes de formação, de conteúdos que retirem da mulher o protagonismo de sua vida, especialmente no que disser respeito às diferentes escolhas para o livre exercício e expressão de sua sexualidade.

 

Feminismo e agroecologia: a experiência das mulheres na construção de práticas agroecológicas
A oficina se iniciou com questionamentos chave para a introdução à agroecologia, que se baseiam nas seguintes perguntas: de onde vêm os alimentos? Temos opção ao comprar alimentos? A partir daí, foram levantados debates como a importância dos produtos orgânicos, que hoje, porém, não representam uma opção por serem produtos caros e mais escassos. Neste contexto, a agreecologia se insere como uma alternativa ao modo de produção capitalista, que vende a ideia da Revolução Verde, na qual a produção de mais alimentos para superar a fome se torna uma desculpa para o uso de venenos, produtos trangênicos e para a mecanização do trabalho.

A oficina trabalhou a ideia de que a agroecologia seja a aproximação da agricultura, que é instável por causa da intervenção humana, com a estabilidade da natureza. Sendo as mulheres as responsáveis pelo trabalho de cuidados, também são elas aquelas que cumprem o papel de “guardiãs da natureza”, e por isso o envolvimento do feminismo à agroecologia diz respeito à auto organização das mulheres, que propõe outro modelo de produção, contrário às empresas que exploram mulheres e visam apenas o lucro. A oficina foi um importante espaço para ouvir as companheiras locais do Vale do Ribeira, que contaram suas vivências, desafios e práticas agroecológicas. O feminismo é um elemento fundamental para que a agroecologia seja realmente uma alternativa das mulheres na defesa dos territórios e de um outro modelo de trabalho, para além do capital.

 

O papel das mulheres na luta pela desmilitarização

Aprofundando a reflexão dentro do movimento sobre o impacto da militarização da sociedade na vida das mulheres, a discussão desenvolvida na oficina abordou os eixos temáticos da política de drogas e do sistema prisional como fundamentais na elaboração de uma compreensão estrutural para o avanço da violência institucionalizada sobre os corpos, os territórios e a vida das mulheres, especialmente aquelas negras e pobres. A atual política de encarceramento em massa, política higienista de controle de determinados grupos sociais e comunidades, atinge direta e indiretamente as mulheres, tanto sob acusação de tráfico de drogas, quanto pela violência cotidiana imposta pelas péssimas condições do cárcere.

As mulheres presentes denunciaram as conexões entre a atual política de criminalização das drogas e uma política sistemática de criminalização da pobreza, que resulta no genocídio da juventude negra. A resposta das mulheres a esta aliança que criminaliza as periferias passa pelo debate da descriminalização das drogas. No caso da maconha, as mulheres defendem a sustentabilidade social da produção agroecológica como caminho para sua descriminalização.

 

Desafios feministas frente à ofensiva conservadora
Enquanto as mulheres seguem na luta por direitos, autonomia e na construção de uma sociedade mais fraternal e igualitária, o capitalismo patriarcal reinventa maneiras de avançar no controle de suas vidas. Em um cenário de crise global, a burguesia, apoiada pela grande mídia, superdimensiona os problemas enfrentados pela classe trabalhadora. Foi levantado que há pelo menos três esferas que se articulam e avançam em estratégias conservadoras: o judiciário, a polícia e a mídia, sendo estes importantes pontos de atenção da militância feminista.

As lutas nos espaços públicos e privado são retroativas, principalmente neste período em que a onda conservadora reafirma a naturalização da família heteronormativa, resiste à socialização do trabalho doméstico, impõe a maternidade e crava o papel do homem como provedor e da mulher como reprodutora. Entre os muitos desafios, que passam pelo enfrentamento de um congresso conservador e tacanho, a principal alternativa feminista à ofensiva conservadora é o fortalecimento da auto-organização das mulheres na disputa ideológica por um modelo de sociedade justa e igualitária.

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